O papel da consciência democrática no futuro das cidades

Fonte: Rede Brasil Atual

O dia 16 de agosto marcou o início da corrida eleitoral nos 5.570 municípios do país. A campanha traz novidades. Vai durar pouco, 45 dias, e deve diminuir também o volume de recursos, com a proibição das doações de empresas a candidatos e partidos. E com a audiência da TV aberta em queda, o horário eleitoral obrigatório tende a ter sua influência reduzida. Crescerá a importância do tradicional corpo a corpo e da presença inteligente nas redes sociais.

Mas não são apenas as formas de campanhas que afetarão as eleições nas cidades. Além da mudança de regras, a crise política e a economia em recessão pesarão sobre o conteúdo. Projetos de aperto fiscal e ataques a direitos, a consolidação do impeachment de Dilma Rousseff, a incapacidade do governo federal de emplacar uma retomada do crescimento na economia exigirão muita competência dos candidatos em mostrar do que serão capazes. E como se não bastasse a crise prolongada pelo golpe parlamentar, há ainda o descontentamento popular com política e o descrédito geral nos políticos – massificado com a ajuda dos meios de comunicação.

“Nessa disputa, mais do que nunca, o debate sobre o destino das cidades e de questões específicas e locais deve ser ofuscado, já que o ambiente eleitoral está profundamente contaminado pela crise política que vive o país. Estão no centro dessa crise, inclusive, o próprio modelo político-eleitoral, a representatividade e a forma como os partidos se estruturaram e cresceram”, escreveu em seu blog a urbanista Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo.

A ocasião, no entanto, pode ser uma oportunidade para se discutir o resgate da democracia a partir das cidades. É o que acredita a também urbanista e professora da USP Erminia Maricato. “Do meu ponto de vista, podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu renda por meio dos governos municipais”, afirmou. “Precisamos recuperar a importância da descentralização das decisões do poder local, a democracia direta, especialmente o orçamento participativo, especialmente o favela-bairro. Transformar as favelas e bairros periféricos em áreas saneadas, em bairros dignos, com todos os equipamentos de infraestrutura”, diz Erminia.

Ricos, famosos… e os projetos?

JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADOMarta e Serra
Marta aderiu aos golpistas do PMDB e a José Serra. Alckmin lançou Doria e rachou PSDB

A cidade de São Paulo, por sua dimensão para o cenário nacional, é especialmente mais contaminada pela crise política. Como em quase todas as eleições, há sempre um candidato cujo objetivo de alimentar o ódio ao PT parece sempre maior do que convencer os eleitores a votar nele, como Major Olímpio (SD).

De novidade, há o racha no PSDB. Para conseguir sua indicação, com apoio de Geraldo Alckmin, o empresário João Doria Júnior superou uma convenção partidária contaminada por denúncias de irregularidades.Alckmin e Doria

E, com outras palavras e estilo, mas idêntico na essência antipetista, apresenta como objetivos desfazer realizações da gestão de Haddad, elogiadas internacionalmente.

Revogar a redução do limite de velocidade que mitigou os acidentes de trânsito e melhorou a fluidez nas ruas, desvalorizar a cultura cicloviária, interromper a expansão das faixas exclusivas de ônibus para introduzir um formato privatizado de corredores estão entre seus objetivos. Quem também não aprecia reconhecer algo de positivo na gestão Haddad é a candidata do PMDB, Marta Suplicy. Marta é a outra ponta do racha tucano. Adversário de Alckmin no ninho, com vistas à disputa regional e nacional de 2018, José Serra preferia indicar Andrea Matarazzo. Perdeu, e fez de Matarazzo vice da ex-petista, com apoio de Gilberto Kassab.

A ex-prefeita, depois de perder para os inimigos em 2004 (para Serra) e em 2008 (para Kassab), juntou-se a eles. Deixou o antigo partido para se filiar ao PMDB de Michel Temer e se associar ao golpe parlamentar que derrubou Dilma ­Rousseff. Em São Paulo, porém, levanta como principais bandeiras ações de seus tempos de PT, como os Centros de Educação Unificados (CEU). As unidades de educação integral abertas às comunidades dos bairros onde estão instaladas foram marca do programa que comandou na condição de petista na gestão 2001-2004. Acabaram abandonadas pelas gestões de Serra e Kassab (2005 a 2012) e só foram retomadas por Haddad na atual gestão, ganhando inclusive cursos noturnos gratuitos de extensão universitária para educadores.

ANANDA BORGES/CÂMARA DOS DEPUTADOSLuisa Erundina
Apesar dos 81 anos, Erundina aparece como alternativa de renovação

A eleição traz ainda como novidade a presença de Luiza Erundina concorrendo pelo Psol. Como Fernando Haddad, mas com menos estrutura partidária e tempo de rádio e TV, a primeira prefeita mulher da maior cidade do ­país (1989-1992) entra no debate eleitoral como reforço do campo democrático e – apesar dos 81 anos bem vividos – como alternativa de renovação, fiel aos mecanismos de democracia participativa e a uma visão de planejamento urbano voltada a corrigir, no futuro, aberrações do crescimento desordenado.

A Fernando Haddad, por sua vez, mesmo exercendo na prática essa gestão baseada no esforço de longo prazo para solucionar os maiores problemas da metrópole, não faltam adversidades. Sua administração sofre com o ódio promovido pelos principais meios de comunicação ao PT .

Ele próprio reconhece ter falhado na comunicação, a ponto de a população não conseguir associar avanços à sua gestão. Por exemplo, a redução do tempo de percurso para quem vive em bairros mais periféricos e trabalha longe. Ou a instalação de iluminação de LED em bairros habituados à escuridão. “A nova iluminação está resgatando a sensação de segurança, pessoas estão voltando até a pôr a cadeira na calçada para conversar à noite. Mas tem gente que acha que isso é coisa da Eletropaulo, não sabe que é da prefeitura”, diz o secretário de Governo, Chico Macena.

LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESSRussomano
Russomanno caiu em desgraça em 2012 ao propor tarifas de ônibus mais caras conforme a distância percorrida

A não-novidade do pleito é a presença do deputado federal Celso Russomanno (PRB). Inexpressivo no Congresso Nacional, Russomanno se vale da popularidade conquistada como apresentador de TV. E que atingiu seu ápice na eleição de 2012, quando ficou fora do segundo turno na reta final. Na ocasião, caiu em desgraça quando sinalizou impor tarifas diferenciadas de ônibus conforme a distância percorrida pelo usuário. Pouco inteligente, numa cidade com as dimensões de São Paulo. Mas graças a essa popularidade, e não à defesa de algum projeto específico, ele voltou a começar a disputa na liderança. Não se sabe como irá terminar.

Cidades engessadas

Um dos principais desafios de quem quiser levar a campanha e o futuro da cidade a sério, portanto, será conviver com menos recursos e pouco tempo para se comunicar. Ainda assim, a sucessão municipal é grande oportunidade de discussão sobre o modelo de cidade que se deseja para o futuro. Se uma cidade que seja espaço de humanização e resistência à mercantilização e inclusiva, ou voltada aos interesses do capital, como historicamente esteve marcada em seu crescimento.

“É o desempenho que eles (candidatos) tiverem nos próximos debates e nas pesquisas eleitorais que vai determinar se um ou outro vai falar de questões mais propositivas ou vai privilegiar o ataque ao adversário”, afirma o cientista político Pedro Fassoni Arruda, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). “A crise política não vai sair do debate, mas as questões da cidade serão colocadas na medida em que os eleitores começarem a cobrar dos candidatos”, diz Arruda.

No primeiro embate televisivo entre os candidatos houve tensão. Excluída por uma regra da minirreforma, que exige da legenda nove ou mais representantes na Câmara Federal para que o candidato participe, Luiza Erundina ficou de fora. Poderia ter participado se houvesse concordância de dois terços dos demais debatedores. Haddad e Russomanno aceitaram, mas Marta e Doria Júnior vetaram. Erundina foi com a militância à porta da emissora, no Morumbi, zona sul de São Paulo para protestar. Somente depois de o debate acontecer o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a inconstitucionalidade da restrição. “A Band antecipou o debate antes da decisão do STF porque quis me excluir, porque eu defendo a democratização dos meios de comunicação”, disse.

Não bastasse o imbróglio jurídico alimentado pela minirreforma, as medidas de ajuste fiscal de grande alcance pretendidas pelo governo de Michel Temer fazem com que os prefeitos e candidatos olhem para as cidades preocupados com o futuro. Sobretudo diante da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241. A proposta quebra as exigências de empenho mínimo com Saúde e Educação.

Para o prefeito Fernando Haddad, os efeitos da PEC vão se tornar agudos na organização territorial da cidade e provocar a disputa da sociedade pelo orçamento público. Haddad lembrou que o poder público é atuante em frentes como saneamento, habitação e mobilidade. “Se não tiver o poder público, como fazer?”, indagou Haddad. “Congelar a capacidade de responder a isso vai causar que tipo de conflito? Não sou capaz de responder qual o significado social e político, como os governos progressistas vão se colocar diante dessa configuração.”

Segundo o candidato à reeleição, a Constituição de 1988 significou um processo de fortalecimento dos municípios, pelo fato de ter descentralizado recursos. “Cada partido criou um modo de governar, nasceram experiências diferentes a partir de uma base constitucional que criava condições inéditas para os prefeitos”, defende, lamentando os retrocessos em curso no país, com a agenda de Michel Temer e um Congresso Nacional de conservadorismo sem precedentes.

Mais humana

O economista Marcio Pochmann, candidato à prefeitura de Campinas (SP), disse que o risco de esvaziamento do debate sobre as cidades nas eleições deste ano ocorre graças ao papel da mídia. “Rui Barbosa dizia que a imprensa são os olhos e ouvidos da sociedade, mas não hoje”, afirma. Durante o debate com o tema “A cidade que você não vê na mídia”, promovido pelo Centro Barão de Itararé no final de agosto, Pochmann disse que a realidade das cidades não é o que se vê por meio da imprensa.

Não bastasse a democracia sob ataque, a capacidade de o processo eleitoral aprofundar a busca de soluções para os problemas de mobilidade, moradia, saúde e educação é limitada pela falta de uma gestão metropolitana. Como diz a urbanista Erminia Maricato, São Paulo são os 39 municípios que compõem o conglomerado urbano ao seu redor, onde vivem mais de 20 milhões de pessoas. Para a professora da USP, falta uma orquestração das gestões municipais. “Na nossa cidade, se você pegar o problema da mobilidade, vai ver que 70% do emprego fica no centro expandido do município e grande parte dos trabalhadores não mora no município”, observa ela, para quem é impossível resolver o problema de mobilidade da metrópole só com política municipal.

A professora chega a dizer que o maior desafio do próximo prefeito da capital será mostrar que os problemas são mais metropolitanos. “Não dá para resolver o problema da moradia dentro do município de São Paulo, nem o problema do meio ambiente. O prefeito de São Paulo é cobrado por coisas que não são dele. Às vezes vem um morador de Osasco ou de Guarulhos cobrar o prefeito de São Paulo por alguma coisa que não é responsabilidade dele”, defende.

A urbanista alerta ainda para a concentração de renda. “Alguns anos atrás, constatei que 23% dos chefes de família do Brasil todo que ganhavam mais de dez salários mínimos moravam no município. É uma concentração de renda forte, é uma população que mora em condomínios e muito ligada à demanda de privilégios. Historicamente, é uma população acostumada a negar o problema da pobreza e da desigualdade – é uma população muito voltada para o próprio umbigo”, diz.

Erminia, no entanto, pondera: “Mas não é toda essa classe média que é assim. Hoje você tem jovens da classe média, razoavelmente bem situados em termos de renda, que estão aí defendendo a humanização da cidade, a abertura da Avenida Paulista, as ciclovias, a prioridade para o transporte público”, destaca, reconhecendo um movimento maior em defesa de uma cidade mais humana.

O professor da PUC-SP Pedro Fassoni Arruda lembra que existem alguns déficits na cidade que têm relação com a própria administração municipal. Ele também diz que houve avanços com a gestão de Haddad, mas como a professora Erminia, Fassoni destaca que na questão das linhas e corredores de ônibus, nem tudo é responsabilidade do governo municipal. “Enquanto a tarifa de ônibus é determinada pela prefeitura, a de trens e metrô é do governo estadual – assim como os ônibus intermunicipais.”

Ele também diz que a prefeitura tem uma parcela de responsabilidade com a segurança pública, com a guarda civil, mas que a essência da segurança cabe ao governo estadual. “Houve melhorias, como o menor tempo para trabalhadores e estudantes chegarem ao trabalho, e a tarifa subiu abaixo da inflação do período. Saúde e educação deixam a desejar, mas houve melhorias graduais, com a construção de postos de saúde, escolas municipais, contratação de professores”, afirma. Indagado se a depender do candidato vitorioso a cidade pode perder conquistas, Fassoni diz acreditar que sim.

A população da cidade de São Paulo, como a das demais 38 cidades que formam a região metropolitana, tem pouco tempo para decidir se caminhará em direção a um futuro mais civilizado, ou se permitirá um retrocesso amargo ao passado, como ao que está sendo submetido o país: o de entregar a máquina pública a grupos interessados em satisfazer interesses privados.

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