Especial Novembro Negro – Entrevista Leci Brandão

Leci Brandão da Silva, 72 anos, filha de servidores públicos, nasceu no Rio de Janeiro, mas adotou a capital paulista nos anos 80, onde consolidou uma carreira que já passa dos 40 anos e soma 23 discos e centenas de composições.

Entre um samba e outro, Leci sempre combateu o racismo, a homofobia, o machismo. Sem pretender, acabou pavimentando um caminho até a Assembléia Legislativa de São Paulo.

Veja a íntegra da entrevista com Leci Brandão, dada ao programa Bom Para Todos: Consciência Negra

CONSCIÊNCIA NEGRA – LECI BRANDÃO

“Eu completei 72 anos em setembro. 72 anos em setembro. To cheia de garra, hein? To cheia de, sabe, to cheia de luz aqui. Luz, mas não é luz própria não. É a luz que muita gente, milhares de pessoas, ajudaram a construir essa energia. Portanto a gente não pode parar. A gente não pode perder a fé. A gente tem que continuar a nossa caminhada. E eu conto com vocês. Principalmente com as mulheres guerreiras, com a juventude, e também com as forças espirituais. Porque a religião de matriz africana também não pode ser tratada do jeito que é por outras religiões. A constituição, tá escrito, o estado é laico. Presta atenção!”

“A turma do rap, a turma do funk, toda essa juventude que através das suas letras, consegue mandar grandes recados. Eles, pra mim, hoje, são os grandes interpretes, entendeu, de toda realidade das comunidades brasileiras. Porque esses movimentos têm em tudo quanto é estado. A gente vai ás vezes pro sul fazer algum show, alguma coisa, e sempre aparecem no camarim pra falar com a gente, acompanham o nosso trabalho. A gente é do samba, mas a gente respeita todos os segmentos musicais, e nesse segmento musical da juventude, tem um pessoal aí que tá fazendo uma transformação, de consciência, sabe assim, consciência de cidadania. Nesse país. Eu to muito feliz com eles quero até aproveitar para parabenizar a moça que você entrevistou que disse que ela é linda, e é mesmo, por ser negra, a gente tem que ter orgulho da nossa etnia e cada dia mais a gente tem que reafirmar essa nobreza, a raça negra brasileira – tem uma nobreza. A ancestralidade já tinha aí foram lá, pegaram, escravizaram, trouxeram, a gente conseguiu através dos anos transformar isso aí. Eu só espero que esse país melhore, eu quero que o Brasil se transforme porque nesse momento ele tá meio perdido, ele tá meio anestesiado, meio impactado, com algumas razões, mas a gente não pode perder a nossa força, não não podemos perder o nosso espaço. Nós não podemos permitir que secretarias, ministérios que tratam dos nossos assuntos sejam extintos. Não podemos permitir isso.”

 

“Em 70 eu já tinha um cabelo Black deste tamanho – eu já tinha essa coisa da minha negritude, da minha luta, porque eu sempre fui uma pessoa guerreira. Eu to aqui nessa casa, sem ser advogada, sem ter passado por nenhuma universidade, mas eu tenho universidade de vida, que é composta por seis palavras: bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, por favor e muito obrigada. Daí, Ciça, com essa postura minha, que é uma postura natural, eu, por exemplo, eu nunca fui mandada embora de lugar nenhum operaria de fábrica, eu também fui, telefonista, auxiliar de escritório, artistas de uma multinacional, – eu sempre percebi que a nossa etnia, embora tenha acontecido nesse país em 1988 a abolição da escravatura, essa lei áurea aí foi uma lei que de outro não tinha nada. Os nossos ancestrais eles foram libertados, mas eles não tiveram nenhuma oportunidade, nenhum acesso, diferente dos imigrantes . que chegaram aqui e tiveram todas as condições. Tantas são as condições que hoje eles mandam, inclusive no estado de são Paulo. Haja vista a sociedade paulista como é – é tudo povo resultante dessa imigração que aconteceu no Brasil – então, a gente sempre percebeu a questão do tratar de forma indiferente e não perceber que somos seres humanos , que temos direitos , que temos inteligência, que pensamos, e que lutamos –  então é assim: a frase que você me deu, das pessoas estarem sempre cabisbaixas, estarem assim tristes, eu acho que eu sempre fui a diferença. Porque, eu me lembro, que quando eu cheguei aqui em são Paulo depois de 5 anos sem gravar, e que eu consegui ter a oportunidade de voltar a gravar, – essa segunda parte da minha carreira que ela começa em 15 de outubro de 85, dia do mestre, nunca vou esquecer, lancei um LP e vim a são Paulo trazer esse disco aqui – em 87 – e nesses shows, o ovo negro de são Paulo percebeu também que havia uma artista , que embora carioca e tal, mas que tava falando coisas importantes, pra criançada também, pros jovens, e eu to falando isso com muita propriedade porque hoje eu encontro adultos negros e negras que dizem assim: eu tinha uma certa coisa assim, as pessoas, na época não se usava bulling, era outra palavra, ah eu sou tratada mal, me botam apelido na escola. Eu também tive apelido. Quando era pequena. Me chamavam de tisiu na minha sala de aula, que eu era a única negra na turma do colégio Pedro segundo lá no rio de janeiro. Então, assim, os pais começaram a pegar as nossas músicas e mostrar dentro de casa, porque todo mundo tinha vitrola, e punha pra ouvir e discutia a letra. Então a gente contribuiu bastante pra que houvesse essa, esse orgulho né?”

“Esse reconhecimento de que nós não somos inferiores, nós nunca fomos inferiores, até porque o nosso povo, ele foi escravizado, ele não era escravo. 0:09:41;06 – na sua terra ele tinha nobreza, eram famílias nobres, e que foram colocadas de forma brutal, cruel, e covarde, nos navios, vieram pra cá e fizeram tudo isso aí. Ajudaram as famílias a alimentar seus filhos. As mães negras tinham um leite de ótima qualidade, que de repente não servia nem pra dar pros filhos delas. Mas pra dar pro filho do senhor –  então esse Brasil de hoje, que ainda tem gente que não reconhece que é miscigenado, que ainda não reconhece que temos direitos iguais, ainda relutam em assinar alguns projetos de lei, em assinar determinadas resoluções pra que haja a inclusão, do acesso, de fato, da população negra, principalmente a população jovem, na universidades, fala de são Paulo tem muito reitor que reluta em aceitar isso. Então veja bem, eu consigo entender porque é que eu cheguei até essa casa, uma pessoa que não tinha nenhuma , eu não tenho antecedente de política. Meu pai era um simples servidos do hospital Souza Aguiar no rio de janeiro. Minha mãe Tb foi servir a escola no rio de janeiro. Eu não sou parente de nenhum dono de cidade do estado de são Paulo. Eu sou a leci Brandão da silva. O estado de são Paulo, o povo do estado de são Paulo, ele deve ter percebido de que era importante a nossa entrada nessa casa. Porque essa casa, que tem 180 anos, ela teve uma mulher negra nos anos 70 que foi a doutora Teodozina Ribeiro , advogada, formada, e que tem a Medalha Teodosina que a gente faz uma premiação para mulheres, 0:12:07;08 – mulheres negras e não negras.”

“E eu sou a segunda negra que entrei nessa casa, em 2010. Então a gente tem um histórico na questão da Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Eu faço parte dessa história e de uma forma muito significativa porque a gente tá aqui com um mandato que é um mandato que cuida de gente. Eu não tenho ligação com comercio, com industria, com nada, a gente cuida de gente. E a gente é gente! Eu mudei o nome do gabinete pra quilombo da diversidade. Porque a gente cuida de todos os assuntos.  E aqui tem pessoas de todos os tipos. E aqui a gente tem assuntos delicados, assuntos que nem sempre o legislativo gosta de discutir, ou gosta de fazer projetos”.

“Às vezes eu vou aí pra congressos, seminários, o pessoal chama a gente pra tudo né? E eu fico vendo discussões que a gente fazia antes de entrar nessa história política, a gente fazia com a arte – então eu fiz da minha arte um instrumento pra defender as pessoas”

“A arte é transformação de vida, é claro. Você pode através da poesia, juntamente com a música, eu sou compositora, então eu faço letra e música, e também interpreto músicas de outros autores e que são músicas que batem com essa minha luta, porque eu sou uma pessoa que vive em 220, às vezes 330 V por minuto. Até minha saúde foi afetada pelo fato de eu me comprometer tanto com essas questões , questões de direitos humanos, questões de igualdade, questão de combate a homofobia, a essa coisa que fazem da agressividade com a mulher, achando que a mulher é sub, a mulher tá aqui, a mulher é protagonista.”

 

“Mas o horror disso tudo é que: por que que nós negros, que somos mais da metade da população , brasileira, temos esse raio de ter que ter novembro da consciência negra? A gente tinha que ser tratado igual de janeiro a dezembro. Porque, assim, em maio, princesa Isabel num sei o que…lei áurea, aí chega novembro , tudo bem, eu amo a questão de zumbi, o movimento negro foi quem teve que lutar pra que a gente celebrasse zumbi e aí é o mês da consciência negra –  só que eu acho, inclusive a mídia, a mídia, ela tinha que se conscientizar de que a negritude tem que ter espaço o ano inteiro, não adianta no dia 20 você pegar meia dúzia de negrinhos, meter um lençol branco  nas crianças, ir pra praça bater tambor e tá tudo certo– e os outros dias? Como é que fica?– como é que é isso aí? –  então eu contesto muito essa questão do mês da consciência negra. A consciência negra ela tem que estar permanentemente –  nós temos aqui, um projeto, que tá na casa, tá na ordem do dia, não sei porque não foi pra votar, que a gente tem aqui a semana do empoderamento crespo né? 0:17:52;02 – do orgulho crespo, é o dia do orgulho crespo, porque aqui tem o dia do ovo, tem dia não sei de que, umas coisas que são inexplicáveis, então, tem orgulho crespo – e vou dizer pra você porque a gente fez isso, lembra das meninas que saíram aí, não sei se na paulista, não sei onde foi, um monte de jovens, com seus cabelos maravilhosos, e tal, eu falei assim: peraí, essas meninas tem que ter um dia do orgulho crespo! E eu quero ver quem vai, tanto é que passou! Dia do orgulho crespo, o projeto ta aí, mas a gente tem que sabe…colocar pra votar – porque aqui tem dia de tudo 0:18:38;03 –  então, as nossas coisas, são sempre assim, chamam uma atenção , mesmo com essa coisa de ter acontecido a abolição, nós estamos no segundo milênio e ainda tem aquela história : o segundo negro, a primeira negra, num sei que lá, pelo amor de deus! – tá tudo atrasado!– tá tudo atrasado, a gente tinha que tá nessa coisa há muitos anos.”

“Você às vezes até encontra um cara que é empreendedor, é dono de uma grande empresa, ele às vezes pode encontrar comigo – vou te dar um exemplo: num supermercado, ele fala assim pra mim ‘o Leci Brandão, te conheço, e tal, seria tão bom se você pudesse fazer um sambinha lá em casa’ –  porque que ele não fala assim pra mim “ vou patrocinar um show seus pra você fazer uma temporada num teatro “ eu ia ficar bem mais feliz. As pessoas vão numa escola de samba ‘ah vou pegar uns batuqueiros aí que eu vou fazer uma feijoada lá em casa . hoje em dia isso não acontece mais – ele não vai chamar batuqueiro, ele vai ter que fazer um contrato pra levar os músicos! E que vão na casa dele fazer um show”

“Tem gente que acha que isso é bobagem! Ainda tem grande grupo de pessoas que estão dentro da política e que acham que isso “ah, mas nada, quem tem competência estuda, tá , acontece que o vestibular desse país , do jeito que eles fazem o vestibular, quem não passa pelo tal do cursinho não tem condições de , de chegar lá – você vê, uma pessoa cursar uma faculdade de medicina, é muito difícil – então o governo tinha sim a obrigação não só da questão, não é só a cota, tem que dar cota livro, tem que dar a cota alimentação, tem que dar a cota transporte, você tem que dar toda estrutura praquele aluno negro , aquela aluna negra, ter condições de cursar o curso de medicina. Eu jamais vi na propaganda do dia do médico, por exemplo, aparecer um médico negro –  tem uma peça aí comercial , que inclusive é ligada a ABB , eu não sei exatamente o que é, e cadê o bebê negro na história? A gente tinha que ter aqui uma política sim de proibir qualquer peça de merchandising qualquer coisa nesse país tinha que ter a presença da população negra.”

“A primeira coisa que se faz aqui, quando chega, é isso: todo mundo que chega sabe, a primeira coisa vamos tirar a secretaria de igualdade racial que não precisa  –  eu também acho que nosso povo tinha que se manifestar pra valer, tinha que ir pra rua. É por isso que eu bato palma pros americanos porque lá é o seguinte: o pau come, o pessoal vai pra rua, taca fogo mesmo, entendeu? Não to querendo que faça isso aqui não. Daqui a pouco vão dizer que eu to pregando uma revolução e não é isso, mas a gente tinha que ter um outro tipo de reação. Então eu sou ás vezes marcada por ser uma artista contestadora, a Leci gosta de encrenca, a Leci tá sempre tocando em feridas que não interessa, eu sou assim – eu não posso ser diferente. Eu vim da base. Eu vim da humildade. Eu varri muito chão, eu pensei pra caramba, batalhei muito, tive muitos calos nas mãos, quando era operária de fábrica, e hoje eu estou aqui deputada. E eu não vou esquecer que quando eu cheguei aqui em 2010 tinham parlamentares aqui que nem me olhavam na cara e foi preciso que eu começasse a mostrar dentro das comissões, educação e cultura, direitos humanos, pras pessoas entenderem que eu só to aqui porque eu to cumprindo uma missão.  Eu nunca pedi pra, sabe, política. Claro que existe. Tanto existe que de vez em quando a gente recebe aqui um monte de denúncia. Chegam aqui no gabinete cartas e – mails enfim, as pessoas denunciando que sofreram preconceito”

“Ah mas aí fica ruim se alguém fizer alguma coisa comigo nos dias de hoje, eu acho que é um pouco complicado. É bastante complicado. Se alguém ousar fazer uma coisa dessas comigo. Até porque eu respeito todo mundo aqui dentro. Respeito. E eu tenho que ser respeitada. Quando eu digo todo mundo, é desde o faxineiro , entendeu? Todas as pessoas que trabalham nessa casa. Cumprimento. Aperto a mão.  Do pessoal de serviços gerais aqui. Eu na do no elevador do pessoal normal. Eu não ando no elevador parlamentar, tenho gabinete aqui, pertinho, pra que eu vou ter que andar lá.”

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