‘Para nós, a periferia é um país’, diz poeta Sérgio Vaz

Fonte: Rede Brasil Atual

O poeta Sérgio Vaz, fundador do Sarau da Cooperifa, vanguarda da produção cultural periférica de São Paulo, recebe hoje (16) o título de Cidadão Paulistano, mais alta honraria do município. O artista lançou em junho, pela Editora Global, o livro Flores de Alvenaria, onde fala sobre tudo o que acontece ao seu redor:“Eu sou o oprimido que vive na periferia e que acompanha de perto o racismo e a fome, seria até um pecado eu não escrever sobre isso. É hora de a caça contar um pouco da história”, diz.

Sérgio avalia que os movimentos de cultura da periferia estão vivendo hoje sua “bossa nova”:  “A grande novidade é que a gente começou a consumir o que a gente produz e não a levar nossa produção para o outro lado da cidade. O que estamos fazendo agora é dando nosso charme, nossa visão sobre as coisas”.

A entrega do título será no Bar do Zé Batidão, onde toda quarta-feira há 12 anos ocorre o Sarau da Cooperifa, no M’Boi Mirim, extremo sul de São Paulo. “Nossa arte sangra, sua, chora. Quando alguém escreve que esta tomando um tiro você escuta o barulho da bala, sente o sangue escorrer pela página”, diz. “A nossa arte vem da rua, das ruas que os anjos não frequentam. É lá que se escreve. Nossa arte vem da dor. Ela não fala dos negros, ela fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles e por eles, junto.”

Para o poeta, a periferia não é apenas um lugar, mas um sentimento e uma identidade. Nesta entrevista, ele comenta as políticas públicas de incentivo para os grupos culturais das bordas da cidade: “Seguimos uma nós filosofia de vida que é: a gente quer ser feliz também. Antes a gente só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos”, diz, lamentando a cruel realidade. “Estamos em um momento que precisamos começar a nos reconhecer como humano. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós precisamos chorar essas 12 mortes.”

Qual a temática de Flores de Alvenaria?

É o dia a dia. Sou oprimido, como cidadão que vive na periferia, que acompanha de perto o racismo e a fome, seria até um pecado eu não escrever sobre isso. Sou um poeta que escreve sobre o que acontece ao meu redor. Gostaria de escrever sobre a Via Láctea, mas no momento estou precisando escrever sobre o racismo, sobre empoderamento das mulheres negras, sobre os saraus, o feminismo, a luta diária para o trabalho. É hora da caça contar um pouco da história.

Outras obras publicadas

1988 – Subindo a ladeira mora a noite (independente)

1991 – A margem do vento(independente)

1994 – Pensamentos vadios(independente)

2005 – A poesia dos deuses inferiores (independente)

2007 – Colecionador de Pedras(Global)

2008 – Cooperifa – Antropofagia Periférica (independente)

2011 – Literatura, pão e poesia(Global)

Depois de tantos trabalhos nessa temática, como você definira a periferia?

É um lugar para trabalhadores e trabalhadoras viverem. Mas não é fácil viver na periferia. Não é indigno, mas é difícil ser da periferia, lutar contra tudo, acordar de manhã pegar ônibus e trem lotado para ganhar salário mínimo, ficar três dias na fila para arrumar vaga na creche e não conseguir, frequentar escola pública ruim, não conseguir fazer um exame médico em menos de três meses. Isso dificulta muito, mas ainda assim é um povo que quer ser feliz.

Esse livro tem alguma característica específica se comparado aos seus outros?

Eu vejo pessoas necessitando sobreviver e querendo sobreviver dignamente e eu quero escrever sobre isso. Nesse livro quis falar de coisas positivas da periferia, mas denunciando os problemas latentes. Eu não faço arte pela arte, mas eu queria também que fosse uma coisa otimista, como “milagres acontecem quando a gente vai à luta” (em referência a uma de suas frases mais famosas). É difícil, mas a gente tem que ir à luta e não aceitar essa condição ou pelo menos saber por que estamos nela, sem achar que é tudo culpa de Deus.

O que significa para você o título de cidadão paulistano que vai receber hoje?

Essa é uma iniciativa do vereador Nabil Bonduki (PT), que quis me fazer essa homenagem e eu aceitei. Nunca fiz nada para ganhar prêmio, mas como veio não acho ruim. Vejo tantas pessoas sendo homenageadas sem fazer nada, sem contribuir para alguma coisa. Recebi a notícia com muita alegria, mas sem histeria. Na verdade, esse prêmio é de todos, até por isso que ele será entregue na Cooperifa. Ele pode significar coisas que a gente pode fazer no futuro, pode abrir portas, pode ajudar a Cooperifa e a periferia. Por isso sou muito grato.

Neste mês foi publicado o edital de Fomento à Periferia, um projeto de lei proposto por coletivos culturais das periferias, que foi sancionado pelo prefeito Fernando Haddad. Esse tipo de ação tem potencial para fortalecer a cultura e manter esses grupos culturais produtivos?

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‘A gente quer ser feliz também. Antes a gente só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos’

 

Eu acho extremamente necessário, uma grande vitória das pessoas que lutaram por isso, até porque é função do Estado gerir a cultura. Vai ajudar, assim como o VAI (Programa de Valorização de Iniciativas Culturais) ajudou a democratizar um pouco a cultura na periferia. A lei Rouanet, por exemplo, é democrática só até a página dois, porque você pode até fazer um projeto, pode captar, mas ninguém quer investir porque você é da periferia. A lei de fomento vem para preencher esse vazio, sem preconceito. Quem são os maiores arrecadadores? Os grandes produtores. E quando vai ser a nossa vez? A Lei de Fomento à Periferia resolve essas coisas. Essas propostas afirmativas têm que ser implantadas.

A lei de fomento prevê financiamento de até 24 meses para os coletivos. Qual a efetividade ds editais mais curtos, como o VAI ou o Proac, para as demandas da periferia?

O VAI é muito mais democrático, porque ele circula mais e a grana é menor, então não interessa a muita gente. Ajudou a dar um pouco mais voz para a periferia. Ele atrai as pequenas iniciativas, que incorpora as médias e que chega nas grandes. Eu não sou contra a lei Rouanet, que é para rico ou classe média. Eu acho que tem que ter pra todos, inclusive para a gente na periferia, mas será que as outras classes sociais entendem dessa forma? Eu entendo assim, afinal como eu sofro preconceito eu não reproduzo. Eu acho que essas leis são necessárias neste momento e dou parabéns para o Haddad por ter sancionado, até porque é impopular neste país reacionário que vivemos hoje. Qualquer medida que seja para o povo é impopular.

Essa visão preconceituosa ganhou força mesmo na área da cultura, onde a periferia tem se destacado tanto?

Agora está mais forte ainda. Nós vemos o crescimento do fascismo. Há uns dois ou três anos eles tinham vergonha, mas agora ele têm orgulho de ser racistas. Nós temos líderes espirituais pregando o racismo e a homofobia.

Que momento vive hoje a produção cultural da periferia?

Estamos vivendo nossa bossa-nova, nossa tropicália, nossa primavera de Praga. A cultura na periferia sempre existiu, mas a partir do ano 2000 surgiu como um movimento. Sempre se fez cultura, mas antes era de uma forma isolada. É quando vem o Hip Hop que a periferia dá um grito de independência: “Eu posso! Eu sou da periferia, e daí?” É aí que vem o orgulho de ser negro, de ser da periferia e o respeito por quem mora na favela. Por isso começamos a fazer cultura para nós. Essa é a grande diferença hoje: antes nós fazíamos cultura para nos apresentar para a classe média e hoje fazemos para nós. Estamos fazendo e consumindo cultura.

Sempre existiu público para essa arte?

Sempre existiu. Quando você começa a assumir a periferia você se assume como patriota também, como alguém que respeita seu país, porque, para nós, a periferia é um país. Agora eu vou fazer poesia para o meu vizinho. As pessoas começaram a entender que nós precisamos formar leitores e público. A Cooperifa tem o Cinema na Laje, Cine Becos, Cine Quebrada, Cine Botecos, tem teatros para fazer na periferia. A grande novidade é que a gente começou a consumir o que a gente produz e não a levar nossa produção para o outro lado da cidade.

Nesse processo teve alguma mudança na temática dessas obras culturais?

Fortaleceu a antropofagia periférica: pegamos toda essa cultura que vem do centro, mastigamos e entregamos de forma periférica. O que estamos fazendo agora é dando nosso charme, nossa visão sobre as coisas. É o nosso momentos. Queremos mostrar a poesia negra como ela é, a literatura periférica como ela é. Nosso teatro se comunica de outra forma, que não é nem melhor nem pior, é a nossa forma. A literatura periférica é melhor que a universal? Não, ela é nossa ela apenas nos representa.

A partir do momento que há essa identificação, é possível atrair um público ainda maior?

Sim, porque as pessoas se reconhecem na sua arte. Elas começam a entender que o teatrão não vai chegar na periferia, que o Paulo Coelho não vai dar palestra na escola pública. O que temos é isso aí: não veio goela abaixo, feito pela Globo ou pela revista. É o cara que surge daqui. A pessoa vai ter orgulho de dizer: eu conheço ele, não pela televisão, mas pessoalmente. Antigamente, a gente ia lá, fazia sucesso e depois era reconhecido na comunidade.

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‘Com Dilma tinha diálogo com a periferia, já neste governo interino é tudo de cima para baixo’

 

Os artistas têm permanecido mais na periferia?

Acho que as pessoas mais ligadas à cultura sim. A periferia é uma identidade, não é um lugar, é um sentimento. É difícil explicar. Entendo que algumas pessoas tenham que sair, porque não é tão fácil viajar todo dia, mas o sentimento permanece, Eu sou dá época que queria mudar da periferia, agora quero mudar a periferia. Não é um lugar maldito do qual temos que sair. É um lugar que infelizmente, por conta do Estado, temos alguns problemas, por outro lado ainda falamos com o vizinho, jogamos bola, fazemos saraus.

Você diz que a produção artística da periferia não é nem melhor nem pior que a do centro. Como você a define?

O grande barato do que estamos fazendo é não ser a arte pela arte. É uma arte solidária e cidadã. Quando você pega a Ivete Sangalo, ela faz uma música de manhã e à tarde ela já está sendo usada para vender miojo, macarrão, shampoo. Já o que a gente faz dói. Nossa arte sangra, sua, chora. Quando alguém escreve que está tomando um tiro você escuta o barulho da bala, sente o sangue escorrer pela página. Quando a pessoa faz um teatro ela está invocando seus ancestrais naquele momento, porque naquele momento ela está dando voz a todo um passado e a toda uma trajetória de que foi difícil chegar ali. A gente coloca força, para que seja escutado. Quando eu faço uma poesia, quando alguém faz peça de teatro não esta falando só por si, mas por muita gente. Essa arte é diferente da do Paulo Coelho, que pode usufruir das benesses do prazer enquanto a gente ainda está lutando para ter o direito a ser cidadão, a participar da civilização, a ser reconhecido como ser humano.

Ouvi de um produtor cultural que os grandes filósofos da atualidade estão nas periferias…

Milton Santos também disse que a revolução iria vir da periferia. Estou começando a acreditar. Nós temos os nossos pensadores, os nossos filósofos. Eu cresci estudando em um lugar onde a maioria dos professores era de classe média. Hoje os professores que estão aqui são daqui, moram no mesmo bairro, isso ajuda a gente a pensar, além dos artistas que ficam e de alguns políticos que surgem dos movimentos populares, por exemplo. Começamos a criar uma casta pensando na periferia, um pensamento periférico, um orgulho periférico, uma forma de pensar. Quando você lê (Karl) Marx, tem que contextualizar para a periferia. Quando lê Charles Baudelaire ele tem que se parecer com o Mano Brown. É isso que a gente está fazendo. Seguimos uma filosofia de vida que é: a gente quer ser feliz também. Antes a gente só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos, estamos construindo. Eu acho que esse é o recado.

A produção cultural tem também o potencial de ser uma alternativa de renda?

Sim, principalmente com a economia solidária. Quando você faz um evento tem que pagar os artistas, tem que pagar produção, no entorno se montam as barracas onde se vendem bebidas… Mexe com toda a infraestrutura e altera a paisagem, com um perfil de resistência. É o empoderamento, palavra de ordem agora. Acho que a cultura serve para a gente não enlouquecer, para sabermos de onde viemos e para onde vamos. Tanto que a primeira coisa que Temer fez foi acabar com o Ministério da Cultura, isso é muito representativo. Por que nos é negada a cultura? Porque cultura nos faz pensar, nos faz sentir humano. A cultura tem um poder de humanizar as pessoas. Quanto menos cultura, mais bruto a gente é. Então, não é só pela econômica solidária, a periferia está ganhando essa humanização que a cultura leva. Algumas pessoas que tinham parado de estudar voltaram por causa dos saraus, pessoas que tinham trancado a faculdade e hoje fazem teses falando sobre os saraus.

Quem é o artista da periferia?

O que a gente faz é para que o pobre não seja cordial. A gente quer que a pessoa saia fora da caixa, que seja mais combativa. Tem gente que me pergunta: mas vocês tiram as pessoas das ruas e das drogas? Esse não é o propósito, eu não sou assistente social. A gente faz cultura e arte é rebeldia. Se não é rebelde não é arte, se não transgride não é arte. Por isso que as pessoas gostam, porque eu gostaria de estar falando o que aquele artista está. Esse é o poder do artista. Ele é o cara que está com uma lanterna na mão. Por isso, eu acho que a arte não pode vir da mão de quem escraviza. A nossa arte vem da rua, das ruas que os anjos não frequentam. É lá que se escreve. Nossa arte vem da dor. Ela não fala dos negros, ela fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles e por eles, junto.

É uma arte de denúncia?

Também, mas só fazer arte na periferia já é algo subversivo. O jovem que faz um funk tinha tudo para ser outra coisa e ele ainda faz música. Ele está subvertendo. As pessoas nos querem presos, algemados, implorando cesta básica ou só trabalhando. Fazer arte neste país já é um ato político. E nós fazemos arte pela literatura, que é sagrado, o pão do privilégio. E nós, arrogantemente, usamos a literatura para construir pessoas que constroem poemas. Eu não preciso falar que é uma denúncia. Quando um negro escreve um poema já é uma denúncia, quando uma mulher negra está em uma peça de teatro já é uma denúncia. A nossa pele, o nosso olhar as vezes baixo, as nossas manchas no corpo, as cicatrizes, já são denúncias.

Há resistência ao golpe na periferia?

Muita. Fizemos várias passeatas. A periferia sempre se manifesta, o problema é que não chega na grande mídia. Quando tocam fogo em um ônibus porque um jovem foi assassinado pelas costas é uma manifestação, mas o que chega lá é que são bárbaros, mas na Paulista são todos inteligentes. Fizemos vários eventos ‘Fora, Temer’, ‘Não Vai Ter Golpe’, mas onde apareceu? Três pessoas fecharam a Paulista pelo ‘Fora, Dilma’ e deu em todos os lugares. Eu encontrei um sujeito esses dias que me disse: “Precisamos fazer palestras porque o povo da periferia esta alienado com golpe”. Eu falei: Ora, por que você não faz isso na classe média? É de lá que veio o golpe. Olha como é o preconceito. Não tem preto na Lava Jato, não tem pobre na Petrobras e ainda é culpa do pobre que é alienado.

Você acha que pode cobrar da população uma posição política estudando em uma escola como a que o Alckmin nos dá, onde se rouba a merenda? E as pessoas ainda ficam com raiva das crianças que ocuparam as escolas.

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‘Somos um povo racista. Nós da periferia sempre denunciamos isso, agora estamos vendo abertamente’

 

Qual a perspectiva para a cultura na periferia com governo Temer?

Sobreviveremos, porque a gente nunca viveu com muito. Sempre nos autogerimos, por isso, talvez sejamos até arrogantes. Acho que quem deve estar mais preocupado são as pessoas ricas. Com Dilma e Lula, isso tinha melhorado muito, estávamos no caminho. Eu assisti a abertura das Olimpíadas e ela ainda tem a cara do governo de esquerda. Provavelmente se fosse do Temer não teria nem brasileiros lá. Trariam o Miami Heat para nos representar.

Nós vamos continuar lutando porque nossa vida é lutar desde sempre. Está mais difícil, mas sempre esteve difícil. Quando a gente sai de casa a gente sai para virar o jogo, porque a gente já sai sempre perdendo. Por isso, a gente precisa jogar melhor, correr mais, lutar mais, porque já começamos perdendo. O que eu quero dizer é que isso não altera muita coisa, porque a ditadura acabou para algumas pessoas, mas para nós ainda não. As pessoas reclamam até de registrar empregada doméstica. Nós sempre vivemos isso, somos solidários, sabemos como é, estamos preparados para a luta.

Com Dilma e Lula, as demandas da classe trabalhadora na cultura eram correspondidas?

Sempre existiram contradições, mas entendemos que com Dilma é uma coisa e com Temer é outra. Mesmo com a crítica você tinha diálogo com a periferia, com todos os defeitos. Com esse governo interino não tem diálogo nenhum, é tudo de cima para baixo. Acabaram com a Secretaria de Igualdade Racial, isso quer dizer muita coisa. Está entendendo o que estamos vivendo? É assustador. É absurdo. Você tem o (deputado) Marco Feliciano que vai defender o racismo baseado na Bíblia. Um cara que agora está sendo acusado de estupro. Você tem uma pessoa que vota a favor do impeachment em nome de Deus e da sua cidade e no dia seguinte vai presa. Em que país estamos vivendo? Somos republiquetas.

Estamos vivendo uma grande depressão, mas talvez seja um dos momentos mais importantes na história do país. Essa história que temos o melhor carnaval e o melhor futebol acabou. O Brasil empatou com o Iraque nas Olimpíadas… O Brasil precisa reconhecer o que somos e talvez daí comece a mudar. Somos um povo racista. Nós, da periferia, sempre denunciamos isso, agora estamos vendo as pessoas dizerem abertamente. O Estado quer controlar o corpo da mulher. Estão sendo aprovadas leis contra leis que avançam o mínimo. Está escancarando o quão reacionário somos. Mostramos que somos governados pela grande mídia, eles dizem o que pode e o que não pode. Caiu a máscara. Talvez a partir daí a gente comece a melhorar. É quando me reconheço escravo que luto pela minha liberdade. É quando me reconheço que começo a mudar.

Cresci ouvindo que o sistema é ruim, mas quem é esse sistema? Hoje está aí. São os iluminados tupiniquins: os donos dos jornais, da televisão, meia dúzia de pessoas. Agora sabemos que a elite não gosta de pobre e de negro. Agora a gente pode lutar. Jogaram-se as fichas. Eu vejo isso como positivo porque muito era velado.

E por que não conseguimos quebrar esse preconceito, sobretudo o de classes?

Durante muito tempo a gente fingia que fazia parte disso. No Rio de Janeiro o cara que mora na favela vai na mesma praia do rico e acha que aquilo é democrático, acha que está sendo aceito, mas não. Nós não estamos lutando na luta de classes, estamos sendo massacrados. Nós não temos armas para lutar. É como enfrentar o Mike Tyson e tentar ficar em cima da lona o máximo de tempo possível, apanhando, caindo, tentando dar um soco… Essa é nossa vida e quando a gente grita somos arrogantes.

Eu lembro do Bolsa Família e das pessoas falando que estavam sustentando pobres. Mas você que faz três refeições por dia não quer que a outra pessoa faça também? O Paulo Maluf nos roubou a vida inteira e isso não é um absurdo. Por que é absurdo que se repasse dinheiro para comer? De onde vem essa lógica? Eu aceito todo mundo da Lava Jato. Eu aceito R$ 23 milhões desviados pelo José Serra, mas e se fosse o Lula, o que você acha que estaria acontecendo agora? Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. E mesmo aqui na periferia está cheio de coxinha, que eu chamo de “simpatizante”, porque não tem dinheiro para ser coxinha. É aquele que não vai ser convidado para a festa.

Neste caso, faltou formação política para a classe trabalhadora se identificar como tal?

Faltou comunicação, formação política… Conheço gente que pegou Prouni e é contra o programa. Conheço gente que comprou casa pelo Minha Casa, Minha Vida e está pedindo ‘Fora, Dilma’. A revista Veja está em todas as escolas, em qualquer sala de espera está passando a Globo, você vai assistir um programa de esportes e falam da crise… É o grande irmão, todo dia e toda hora. Não sei onde nos perdemos, mas nos perdemos. Qualquer coisa que eu posto no Facebook me mandam para Cuba, me chamam de petralha. Como? Se eu não sou filiado a nenhum partido.

Esse preconceito se manifesta também contra a produção cultural da periferia?

Sim. O funk, por exemplo, não é mal visto pela música, mas porque é feita por negros. A música em si diz a mesma coisa que o sertanejo universitário, que é feito por brancos. Eu não sou do funk, mas respeito: alguém que não teve nada ainda quer cantar. E o funk não está enriquecendo ninguém além do cantor, porque ele mesmo faz a mídia e vende na quebrada dele e consegue sucesso, sem passar por nenhuma gravadora. Por que o rap foi perseguido? Porque tinha rádio comunitária, fazia sua própria roupa… O mundo foi feito para poucos. Existe um pensamento único e quem sai dele é pederasta, terrorista, bêbado, maconheiro. Porque o status quo diz que você deve assistir TV, ir ao cinema, ir ao shopping, comprar, fazer academia, ir ao barzinho, ler os mesmos livros. Aí você fala que não quer e te segregam, ou pior, te matam. Olha os nossos líderes mundiais: Nelson Mandela ficou 27 anos preso, Martin Luther King e Gandhi também. Mas sabe o que eu queria dizer?

O quê?

Eu acho que nos devíamos estar em busca de resgatar a humanidade de cada um. Estamos em um momento que precisamos começar a nos reconhecer como humano, a reconectar.  Precisamos de gente que entenda a dor do outro, com empatia. Parece que a gente perdeu essa capacidade de ser humano e viramos um produto. Nós somos um produto… Aquela pessoa dormindo na calçada é uma estatística. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós precisamos sofrer essas 12 mortes, chorar cada uma delas. A vida precisa voltar a ter valor. Nós precisamos se indignar.

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